quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

a maçã do novo adão

Já passaram dois anos desde que partiste. Pouco mudou. Fico feliz por ver que a tua filha está saudável e que está feliz, apesar de tudo.

Uma vez perguntei-te, “Porquê”, e tu apenas respondeste, “Porque sabe bem”. Eu nunca pensei que me fosses dar uma resposta dessas, pensei que ias dizer que tinhas feito as escolhas erradas, que viste na heroína uma forma de escape, nunca pensei que fosse apenas por “saber bem”. “Uma vez, fui até um campo abandonado, num dia de verão, o sol estava no sítio certo, não estava muito calor, mas ainda estava agradável. Então consumi uma dose. Por momentos pensei que o mundo era só meu, que deus tinha criado aquele pequeno jardim do Éden só para mim, e a heroína era a minha maçã. Eu também trinquei essa maçã por causa duma mulher. Mas agora eu estou livre, e ela ainda anda agarrada”.

Infelizmente, essa maça deixou marcas. Pior que o vicio, foi o pressagio de morte que veio com ele. Uma doença que não mata, mas também não deixa viver. Tu pediste-me para nunca repetir o seu nome, e assim o farei. Quando vi o teu corpo, pensei que aquela não podia ser a pessoa que eu conheci em tempos. Tu eras bem-disposto, jovial, sorridente, mas ali estavas cinzento, frio, sozinho. Aprendi contigo que não devo ter vergonha pelo que sou, tal como tu não a tiveste, mas que não devo fazer dos meus erros, glorias, devo aprender com eles e querer ser melhor. E é também por ti – não só por mim – que eu quero ser melhor. Quero ter uma vida que me satisfaça tanto como a tua. Eu não estava à espera que partisses, nem mesmo quando te visitei no hospital. Se tu ainda tivesses a tua voz, certamente me dirias o que repetiste várias vezes durante a minha infância, “estás com essa cara porquê? Amanha já está sol outra vez”.

Para ti e por ti.

sábado, 6 de fevereiro de 2010

a viagem

As letras fogem entre os acordes monossílabos da melancolia proveniente das vicissitudes triviais dum mero escritor e os beijos de uma borboleta que se faz humana para amar o olhar como a morte ama o violoncelista. A viagem parou e tudo se tornou real. O homem quis saber a minha validade e eu voltei a ver tudo direito. Mas depois cai e voltei a ouvir os violinos. A melodia ia crescendo e a borboleta começa a voar. Um homem com roupas de fada espalha a palavra, diz-nos que os nossos demónios, no final, são os nossos melhores amigos. Somos nós que não queremos ver que já estamos no nosso último acto. Fazemos banquetes para as despedidas, ilustramos a nossa dor, pintamos as nossas lágrimas, cantamos com vozes desgarradas sem pensar em falar amanhã. Aceitamos o fim do percurso. À medida que andamos, sentimos a partida já distante e vemos a meta apenas a dois passos. Assim esquecemo-nos da viagem, não aceitamos o azul, só procuramos o medo da explicação.

No final só perguntámos, Está bom para ti.

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

o teu cheiro

Só há cerca de dois ou três meses é que me apercebi da importancia do cheiro, do cheiro das pessoas. Apercebi-me do cheiro do Alexander. Um dia, fui até sua casa e quando me sentei no seu sofá, vi um casaco de malha cinzento ali abandonado. Obviamente. reconheci que o casaco lhe pertencia. Lembro-me de o ver várias vezes com ele vestido, quantos são os retratos que tenho na minha mente e nas minhas fotografias. Não resistir a pegar nele. Juntei-o ao meu corpo, como se abraçasse o homem que o veste. Comecei a cheirá-lo e, num só segundo, mil imagens invadiram a minha mente. Inquieto, levantei-me pois vi que tinha entrado na sala. Olhei para trás e senti que ele estava comigo.