domingo, 2 de outubro de 2011

cartas perdidas: ilha

César, minha ilha de amores imaginários. Minha terra de luz onde há pássaros a cantar nos campanários.Tens campos de milho a chegarem-te à porta de casa, e eu vejo onde te escondes. Esperas as cegonhas todas as primaveras, com mais amor do que esperas as minhas cartas. Às andorinhas reservas os teus nichos, maiores que o amor que para mim guardaste. Tua pele cheirava a rosmaninho e eu para ti era feito de alecrim.

Não podaste a macieira, e ela apodreceu.

segunda-feira, 5 de setembro de 2011

Hipopótamo

Um dia quis escrever um livro. Estava a fumar um cigarro na minha varanda e a ter uma conversa comigo mesmo. Pensei no café que tomava e como era demasiado cremoso. na embalagem dizia aveludado, quando devia dizer cremoso. Pensei na pontuação e como não queria ter trabalho com isto. Pensei num titulo. Conversas com o meu cigarro. Conversas de cigarro. Monólogos do cigarro. Monólogos de cigarro. Tudo me parecia pretensioso e forçado. Da minha varanda, conseguia ver um bar de strip e os monólogos de cigarro passaram a monólogos despidos. Mas fiquei enjoado. E não subitamente enjoado. Se ficasse subitamente enjoado, já estaria a fazer demasiado esforço e este livro era suposto ser simples, como se as ideias surgissem e aparecessem no papel. Mas não apareciam no papel, eu teria que ligar o computador, abrir o processador de texto, escolher o tipo de letra, o alinhamento, o tamanho. A ideia estava a ficar demasiado mecânica. Voltei a pensar nas stripers. Monólogos despidos não fazia sentido. Comecei a pensar em sexo e ligações intimas e corpos suados e prazer e gritos e dor. Estava tudo a ficar muito porco. Havia muitos "e". Queria escrever sobre as ideias que tenho quando estou sozinho. Sobre esses pensamentos solitários, sem pensar muito neles. Lembrei-me que gosto de hipopótamos. Se calhar podia escrever um livro sobre hipopótamos, ou sobre o que eu penso deles. Eu gosto de hipopótamos. Acho que gostar das minhas ideias é como gostar de hipopótamos, quando começo a dizer isso muitas vezes, a ideia de gostar dessa ideias, ou dos hipopótamos, começa a soar estranha.

Se um dia escrever um livro vou lhe chamar hipopótamo. Sem nenhuma razão especial. Só porque gosto de hipopótamos.

domingo, 4 de setembro de 2011

mar de cinzas e cimento

É como se me matasses e eu morresse de novo.
Mas a maquina é suave.

Sê esmagado por elefantes de metal que fogem do meu mar salgado,
Vais ser sangue, suor e lágrimas uma vez só.

Vais voltar à terra de onde vieste com o rabo entre as pernas,
que nem cão vadio que és.

Vou ser sangue, lágrimas e sal.
Vou ser eu mais um morto.

Sê a dor e a droga que não devolves.
Vais querer o amor que não me querias dar.

Vai ser como se morresses de novo, só mais uma vez, bem devagar,
no meu mar salgado.

domingo, 17 de julho de 2011

Os teus lábios são os meus lábios. O teu corpo é o meu corpo.

Avançam sobre a relva com passos furtivos, se bem que com a segurança que lhes é devida, a de não serem perturbados. A corrente da alma escoa-se naquela direcção; não podem fazer outra coisa senão partir, deixando-me a sós. A escuridão envolveu-lhes os corpos; que canto estarei a ouvir; o do mocho, o do rouxinol, ou o da carriça?


Caiu um peso na noite, o que a fez afundar. As árvores parecem maiores devido a uma sombra que não é a que lhes está atrás. Ouço os ruídos que me chegam de um cidade cercada, quando os turcos estão esfomeados e de mau humor. Ouço-os gritar num tom agudo.


Tudo parece estar vivo. Esta noite não consigo ouvir morte em parte alguma.

Tive que apagar a luz

Se fosse num comboio e um caixeiro me oferecesse um pouco de rapé, por certo que aceitaria. Oh! O mais certo seria fazer-me entrar em danças selvagens....


Está na hora de entrar em casa, numa casa seca, habitada, descomprometida, num local carregado de tradições, objectos, montanhas de lixo e tesouros espelhados pelas mesas.

quinta-feira, 7 de julho de 2011

Circus

Em Circus há uma curiosa sensação e portanto estranha familiaridade nos olhares das pessoas, nos recortes dos locais. Não existe o glamour dos bastidores, apenas o esforço destas pessoas em mostrarem-se mais um pouco. Assumem assim as suas stage personas fora do palco, estendem a sua fachada, são freaks por mais um bocadinho. Aqui não existe o "momento decisivo", apenas um momento. Nas palavras de Susan Sontag, Nenhum momento é mais importante que outro, nenhuma pessoa é mais interessante que outra.

A câmara é o veículo mais fluido para encontrar aquela outra realidade. O prolongar do espectáculo, o prolongar da identidade, da falsa identidade. Os rostos são apenas uma pequena referência do que é ser humano, nesta teia de outsiders, onde qualquer um pode ver o seu próprio rosto, e perceber que também está de fora. Aqui existe a aceitação, a aceitação de uma nova realidade, estranha e imaginada, onde tudo parece tão verdadeiro como a outra.

Reflexão sobre Circus, de Sara Reis

quarta-feira, 13 de abril de 2011

No silêncio dos pecados habitava a felicidade

No silêncio dos pecados habitava a felicidade deles. Disseste-lhe “A inocência com que brincas no parque, arde-me em todos os pontos da alma”. Ele, que o viste chegar num dia de sol fraco, partiu numa noite sem lua. O caminho tornou-se longo e a estrada larga. O céu fantasiou-se de roxos violentos, e violetas modestos. Doravante comeriam ambos da dor que em si pariram. Despojado de matéria, entregaste-te ao azul que entrou no quarto, que te entrou na alma. Inebriado pelo caudal de sensações que te percorriam as veias, deixaste-te apodrecer. Os teus cavalos caíram no abismo. Doce linho que te envolveu no silêncio. Doces cravos que te pregaram ao chão da inexistência. Selaste o moimento.

quinta-feira, 10 de março de 2011

escrita crua: das sementeiras

Andavam pela casa amando-se no chão e contra as paredes. Respiravam exaustos como se tivessem nascido da terra, de dentro das sementeiras. Beijavam-se magoados, até se magoarem mais. Um no outro eram prisioneiros um do outro, e livres libertavam-se para a vida e para o amor. Vivendo a própria morte voltavam a andar pela casa amando-se no chão e contra as paredes. Então era a música, como se cada corpo atravessasse o outro corpo e recebesse dele nova presença, agora serena e mais pobre mas avidamente rica nessa pobreza. A nudez corria-lhes pelas mãos, onde tudo é branco e firme. Aquele fogo de carne era a carne do amor, era o fogo do amor, o fogo de arder amando-se por toda a casa, contra as paredes, no chão. Se mais não pressentissem bastaria aquela linguagem de falar tocando-se, como dormem as aves. E os olhos gastos por amor de olhar, por olhar o amor. E no chão contras as paredes se amaram e pela casa andavam como se dentro das sementeiras respirassem. Prisioneiros libertados, um no outro eram livres e para a vida e para o amor se beijaram magoando-se mais, até ficarem magoados. E uma presença rica, agora nova e mais serena, avidamente recebeu a música que atravessou de um corpo a outro corpo chegando às mãos onde toda a nudez é branca e firme. Como uma carne de fogo, incarnando o amor, incarnando o fogo, contra o chão das paredes se amaram, pressentindo que andando pela casa, bastaria tocarem-se para ficarem a dormir, como acordam as aves.

sábado, 5 de março de 2011

ponto #1: como reduzir o existencialismo a conversa de café

explica-me o para sempre, que para sempre, o para sempre.

eu só posso dizer que sonhei com um amor que nunca ia acabar, e que deus me iria perdoar.
mas o tempo chegou por fim, com as vozes fortes como trovões, que destruíram os meus sonhos - partiram-nos em pedaços.
Ele chegou e encheu os meus dias com verão e esperança, ele levou a minha infância na sua garganta. O para sempre é o verão, e a esperança. E eu espero que ele volte para mim, e viveremos os anos que passaram - mas há sonhos que não podem assim ser. Esperei que o para sempre fosse o que devia ser. A vida acordou-me.

sábado, 26 de fevereiro de 2011

bençãos.

Bem hajas oh luz do sol, dos órfãos agasalho e manto.
Imenso e eterno farol, neste mar largo de pranto.
Bem hajas água da fonte, que não desprezas ninguém.
Bem haja a urze do monte, que é lenha de quem não tem.


Bem hajam rios e relvas, paraíso dos pastores.
Bem hajam as aves das selvas, música dos lavradores.
Bem haja o cheiro da flor que alegra o lidar campestre.
E o regalo do pastor, a negra amora silvestre.

Bem haja o repoiso e a sesta, do lavrador e da enxada.
E a madressilva modesta, que espreita à beira da estrada.
Triste de quem der um ai, sem achar eco em ninguém.
Felizes os que têm pai, mimosos os que têm mãe.

quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

amores de areia e vidros

Que fazes tu louco homem? Pensas que é tudo assim tão simples, que podes escolher amantes como quem colhe rosas dum quintal? Para beijos e abraços, braços e pernas, não faltam pretendentes, mas não queres ser senhor de alguém? Deixa de ser a mão que és e passa a ser um braço, um ombro, um peito, um coração. Perdes-te por dor e pecado, lume e ciume e tudo o que mais existe por nada, por uma noite numa praia deserta, com alguém cujo nome passará a ser apenas um número para ti. Queres ser como ela? Como aquela meretriz que agora tanto desprezas? Deixa a soberba e vaidade que trazes nos teus brilhantes e entrega-te de vez a quem te ama de verdade. Deixa a paixões de cavaquinho e copo do vinho e aceita o amor do tempo e o tempo que esse amor traz. Não queiras ser como ela que acordou tremendo, de manhã, na areia, sem olhos para lhe penetrarem o coração.

Sai desse barco negro e aceita a estrela que te queiram dar. Eu por ti rezo, para que ainda tenhas alguém à tua espera.

segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

a felicidade

Desci a montanha que levava ao vale, e a paisagem desaguou no mar. As gotas de orvalho eram tantas e tão cristalinas, que pareciam cristais que se evaporavam com o beijo da luz. A luz espantava-se com a sua própria grandeza, tocando nas mais pequenas coisas. As cores, vivas de serem novas, trocavam de cor entre si.

Parecia a primeira alvorada do mundo.

sábado, 29 de janeiro de 2011

cartas perdidas: o adeus de almada

Numa quarta feira, como tantas outras, cheguei a casa e tinha à minha espera um elefante e um isqueiro. Dentro desse elefante havia uma carta.

Vou partir mais uma vez. Mas antes disso, quero devolver-te o teu isqueiro. Junto com ele, envio outras coisas, como a conta do café. Acho que por esta altura já me deves o suficiente para comprar um carro. Mas agora num tom mais sério, tenho imensa pena de não te ter encontrado. Mais uma vez, fui à tua procura e não te encontrei. Podias me ter fotografado pela última vez naquela casa, mas pensando bem, já me fotografaste tantas vezes que já me perpetuaste lá.
Deixei tudo com a tua mãe. A tua mãe. E o cheiro da tua casa. Minha mãe e minha casa.
Obrigado. Também vou sentir a tua falta.

"Totally", A.

a impotência literária

Levantaram-se as almas do chão, e dançaram em meu redor. Banquetearam-se com o meu estado. Meu deus, meu amo, e meu senhor; quebrastes as minhas cadeias. Sou a sombra. Apenas a sombra. Alma penada desnorteada. Não abandones a minha alma na mansão dos mortos. Defendei-me, oh vós que sois o meu refúgio. Tu que és porção da minha herança e do meu cálice. Está nas vossas mãos o meu destino. Convosco a meu lado não vacilarei.

Por isso o meu coração se alegrava e a minha alma exultava. Por isso todo o meu corpo descansava tranquilo.

Vieram os corvos limpar a carcaça.

domingo, 16 de janeiro de 2011

os canais da nossa rua

Da televisão ouvem-se sons de interferência, como um zumbido azul das formigas que comem o ecrã. É estranho ter saudades de algo que não existe?

Este é um dia mau. Nada faz sentido. E não sei porquê tenho saudades de chorar no teu regaço enquanto me dizes que tudo vai correr bem. Sinto falta das memórias que nunca tive. Da minha versão das coisas. Dos dias solarengos de Inverno.

Era por tua causa que eu dizia coisas sem sentido. Nós éramos os amantes perfeitos, com um casamento na igreja de deserto, num domingo branco em Agosto. O meu sorriso de Agosto, o meu sorriso de domingo. Como tenho andado perdido sem ti. Lembro-me das nossas tardes de Fevereiro passadas nas ruas molhadas e a correr para comboios. Das nossas noites de Janeiro à espera do outro, ou em Março, a sonhar ao sol no teu quintal. Mas perfeitas eram as manhãs de Dezembro com os cigarros na cama e o teu café envenenado. Em Abril, partiste com as águas. Partiste em mil pedaços de água.

Tenho saudades do teu abraço, mas não me lembro dele. Não podemos ter falta daquilo onde nunca estivemos. Eu sempre disse que para mim eras um lugar, não uma pessoa. Casa é onde estou contigo. (e isto tudo fazia mais sentido se estivesses aqui)

Tenho saudades tuas. Mas a televisão diz que não devo. Tu pertences àqueles que estão sozinhos, partidos e magoados, pisaduras e cicatrizes que te vão mostrar quem és.


Da televisão ainda se ouvem os sons de interferência, como um zumbido negro das formigas que dançam no ecrã. É estranho ter saudades de algo que nunca existiu?