terça-feira, 29 de junho de 2010

crónicas de um soldado apartado: aurora

Corria uma brisa fresca, e o rumor das copas das árvores indiciava que a batalha estaria para breve. Já reunido ao batalhão, fitava, atónito, caras anónimas. Jovens. Inocentes. Aquele além não terá mais que 14 anos. A armadura sobeja-lhe no corpo, e é para ele antes um fardo difícil de carregar, ao invés de ser a sua segunda pele, mais rija; tampouco consegue envergar simultaneamente a espada e o escudo. Pobre mãe. Pobre filho. Roubou o reino a inocência àquelas lânguidas feições, àqueles pálidos olhos. Onde estarão os heróis de guerra? Ter-se-ão quedado no meio da peleja? Mas que meio?, se batalhas a serem travadas sempre houve; onde o início? Onde o fim? Soldados em desgraça… terão caído do seu cavalo, trespassados por uma ignóbil lança. E suas marias, que pensarão? Esperarão até ao fim dos seus dias, crentes de que o seu soldado, o seu homem, o seu amante, voltará cavalgando, vitorioso? Chorarão, quando se lhes chegar a maldita notícia? Chorarão, que todas as lágrimas ainda não foram choradas. Assim são as mulheres, choram na mesma proporção que amam. Por ora descansarei. Ao rumor das árvores, juntou-se agora o rufar dos tambores. Em mim, apenas minha alma se agita. O rapaz chora.

sexta-feira, 25 de junho de 2010

Re: Stacks

Já fazia algum tempo que não pensava em ti. Até que um dia, por culpa do meu fatal destino, ouvi a música que me lembrou de quem tu eras. Passei dias a pensar em ti, a tentar trazer o teu rosto para perto dos meus olhos. O cinema juntou-nos. Olhaste-me através da pelicula, por detrás de fumo e luzes. Ali, estavamos sozinhos outra vez. Só eu e tu na imensa escuridão, tão obscuros e trágicos como sempre gostei. Quando vi o teu nome na tela, chorei.
Ali, senti saudades de tudo que não vivemos.

(Skinny Love)

segunda-feira, 21 de junho de 2010

cartas perdidas: cruz das tormentas

Matem-me.
Tirem-me deste tormento
Que é meu sofrimento
No qual eu nado e me afogo
Lentamente...
Esta cruz que me persegue
E que não consigo afugentar
Persegue-me mesmo
Sem precisar de me procurar.
Eu trago-a em mim,
E de lá não a consigo tirar.
Porque tens que me massacrar?
Desaparece.
Deixa-me em paz.
Tu que transformas a minha vida fugaz
Na pior das mortes
Lenta e vagarosa
E preguiçosa em chegar.
Pára de me importunar...
Porque tudo me parece
uma cabala em que tudo se transforma:
Os segundos em horas
As horas em semanas
As semanas em anos
E os anos em vidas.
Passadas e esquecidas
Que procuram regressar.
Espero por ti há tempo demais...
Porque prolongas essa demora?
Se eu só quero desaparecer,
Porque insistes em me fazer viver?

segunda-feira, 14 de junho de 2010

crónicas de um soldado apartado: Maria, seu lar

Maria trouxe-me água e afagou-me no seu regaço. Meu cavalo, fiel companheiro que me trouxe de volta ao conforto do lar, bebia nessa fonte de vida eterna que são as águas do leito do rio. O colo branco de Maria, com o seu perfume a jasmim, revigorou-me. Sua essência voltara a correr-me nas veias. Oh minha amada de todas as horas, porque me amas tu de coração na mão, por cada vez que parto? Tola mulher, esperas que até ao fim dos tempos retorne a casa, nem sempre são, mas a salvo? Sou cobarde e preciso de ti. Isso, tira-me a armadura que pesa a este escasso corpo. Sim, sara minhas feridas com teus mil cuidados. Faz-me teu, que em breve partirei. Amo-te e necessito-te, mas tenho um dever para com meu famigerado rei.

(100) dias de inverno

Custa-me ver-te falar sobre as coisas que não sabes.
Custa-me ouvir a tua voz mesmo quando não ouço o que dizes.
Custa-me olhar para a tua cara, mesmo sabendo que já me deixou feliz.
Custa-me pensar na tua presença sem imaginar a tua ausência.
Mas, pior que tudo isto, custa-me escrever isto sabendo que é para ti.
Gostava de ter uma forma de te contar todos os meus segredos que não te posso contar e assim ignorar tudo que me irrita em ti.

domingo, 13 de junho de 2010

cartas perdidas: a ira de césar

Como ousas tu, Almada, depois deste tempo todo, dizer que eu te fiz cativo? Acreditas mesmo que sou eu que te prendo? Tu és quem não quer ir embora. Culpas-me por todos os teus fracassos, dizes-me que sou o motivo para todas as tuas derrotas. És tu quem não quer ser mais homem do que o homem que és hoje. Eu abri-te a porta, permiti que deixasses entrar outras pessoas, contudo fazias com que eu ainda quisesse beber do teu café envenenado. E eu sempre sorri, sem saber quem bebia.

Tu sempre gostaste de me lembrar da minha condição ridícula e do meu engenho mediocre. Invejo-te, não pela pessoa, mas pelo acto. Eu, ao contrario de ti, sempre te invejei pela pessoa, pela pessoa que eras, pela pessoa que amei e sempre respeitei. Mas tu, fazias sempre por insultar a nossa amizade, sujavas o meu nome, arrastavas o meu corpo pela lama, e fazias das minhas lagrimas motivo de gargalhada. No inicio também me ri, enganado, coitado...

Almada, tanta é a minha raiva e desprezo por ti, que o meu amor não me permite escrever uma boa carta.


quinta-feira, 10 de junho de 2010

cartas perdidas: febre adormecida

Fotografaste-me, e despiste-me. Puseste a cru todas as minhas fraquezas, e os meus vícios, e as minhas solidões, e as minhas angústias. Acto vil, o teu. Roubaste-me a alma, e perpetuaste-a nesse pedaço inerte de papel.
"Poesia", dizias tu. Sempre amei mais a prosa e o seu discurso directo, sem floreados de talha dourada.
Guardaste-a para ti, e prendeste-me a ti. Sou teu cativo.
Egoísta, porque de ti não tenho mais do que uma vaga lembrança.
Liberta-me.

domingo, 6 de junho de 2010

carta biografica de um peixe que pensa em amar

Desde sempre me fora imensamente difícil falar sobre as minhas amizades, em vários sentidos. Apenas sobre Almada conseguia escrever sem sentir um pequeno nojo assim que pegava na caneta. Talvez seja por causa das cartas, as nossas cartas, que começaram a tornar-se mais importantes que os nossos encontros. Decidi expô-lo e, assim, a mim também. Em cada carta falava de um aspecto diferente da minha vida ou da sua, mas quando chegou o momento de lhe falar sobre uma nova amizade que nutria, não consegui escrever. Enquanto a minha voz se calava, a minha caneta começava a secar.

Agora, já uns anos depois, consigo falar graças a uma caneta nova, mas não a Almada.

Durante uma semana dei abrigo a um jovem estudante de medicina de apenas dezoito anos. Eu deveria ter cerca de vinte e cinco na altura, não estou certo. Se não era essa a minha idade, sinto que as minhas atitudes e comportamento em relação a ele remetem para esse periodo da vida, onde já não somos adolescentes, somos adultos, mas ainda temos os mesmos dilemas, mas com um pouco mais de dinheiro no bolso.
Nos primeiros dias, convivemos como colegas de quarto que fazem por se evitar. Ele mostrava-se agradecido pelo meu gesto altruista e eu sentia-me bem por ser um bom samaritano. Desde o inicio achei interessante o seu fascinio por mim, vi como ele me admirava, como secretamente sonhava ser como eu. Ele costumava espreitar enquanto eu tomava banho. Nunca me incomodou, gostava de agradar-me de todas as maneiras, tentava ao maximo que eu ficasse satisfeito. Em troca, eu dava-lhe bastante de mim, talvez demasiado. Tentei ensinar-lhe o maior numero de coisas possiveis. Ele sempre se mostrou disponivel a aprender. Sempre quis saber mais.
Eu adorava acordar com o cheiro a café pela manhã. Fazia-me lembrar outros tempos, também eles agradaveis, mas nos quais eu me sentia completo.
Quando ele finalmente arranjou casa, não me senti assim tão sozinho, apenas que tinha perdido algo de mim. E realmente perdi, a minha juventude, ele levou consigo um colar que me pertencia desde sempre, que marcou quem eu era. Talvez só o deixei fazer isso porque ele lembrava-me eu há muito tempo atrás. Antes de muitas estradas e macieiras no Outono.

Ali, sozinho na minha sala, lembrei-me de quanto sentia a falta de Almada. Ele uma vez disse-me, Vivi num estado onde nem ousam entrar. Flutuei. Planei acima, intocável. Vivi a vida de um outro eu. Mudei assim, segundo as tuas teorias malucas do universo. Com a pequena diferença de que me apercebi. Agora dói. Porém sou agora eu quem diz, Vivi num estado por entre celuloide e milagres em fotogramas. Flutuei. Planei acima, intocável. Vivi a vida de um outro eu. Mudei assim, segundo as tuas teorias malucas dos amores e dos romances. Com a pequena diferença de que não consegui separar de mim, nem de ti. Agora dói. Mais que nunca.