segunda-feira, 31 de maio de 2010

crónicas de um soldado apartado

Congeminei-te nas minhas entranhas. Eis-te agora, sozinho, para o mundo. Cavaleiro.


Estão despojados a meu lado a minha espada e o meu escudo. Despiram-me as minhas vestes, e agora enfrento o mundo deitado numa cama, envergando nada mais do que uma humilhante túnica. Abandonaram-me às sortes, e não sou mais do que um enfermo. Apodreço neste local quente e húmido e fétido, onde até o mais desprezável insecto zomba de mim, planando acima da minha moribunda condição. Pela Pátria lutei. Pela Pátria me feri. Lutarei novamente por ela quando uma nova guerra, no horizonte surgir. Que o amor é coisa visceral que, como uma lança, nos fere em pleno campo de batalha.

segunda-feira, 24 de maio de 2010

eu beijo-te com os olhos, que não são meus nem teus

quando César viu Almada, segundo o primeiro.

Num final de tarde de primavera, César estava sentado numa simples mesa de café, com o seu cigarro e um livro,"O Amor nos Tempos de Cólera", numa versão bem antiga e já gasta. Esperava uma amiga que já não via há algum tempo. Era daquelas pessoas cuja existência era questionável, ele por vezes não sabia se ela não seria apenas uma figura da sua imaginação, como tantas outras, que habitaram e ainda habitam a sua cabeça. Quando ela entrou, transformou-se numa memória esfumada, que se desfazia com os raios de sol, pois os olhos de César apenas viam o homem que a acompanhava. Era Almada Zarco, viria ele a saber. Um jovem soldado que a amava a pátria e o seu cavalo. O seu corpo tinha uma leve luz vinda de trás que deixara o outro maravilhado. “Almada, César. César, Almada”. As apresentações foram feitas e os cafés foram bebidos. César reparou no peculiar ritual de beber café que o Almada praticara. Mexia o café, lambia a colher, e voltava a pousá-la. Secretamente, César sorriu.

A sua amiga, cujo nome e existência não tem importância para a história senão para ilustrar de forma coerente o encontro entre estes dois homens, tinha que ir embora, deixando assim, por momentos, César e Almada sozinhos no café sem muito que conversar, a não ser aquele livro que estava pousado na mesa. Mas mesmo assim não arriscaram entrar numa conversa que podia nunca mais acabar.

Almada tinha que sair, tinha que ir para a estação de comboio, de onde partiria para um local que nunca César soube qual era. Este fez-lhe companhia, fumando, sorrindo, um pouco envergonhado. Os seus olhos abraçavam aquela imagem para sempre, e ainda abraçam. Um homem, com o inverno aos ombros a ser abraçado pelo verão.

Chegados à estação, César tenta apanhar tudo que consegue num só olhar: a luz, as pessoas, o movimento, os cheiros. Almada olhou para a sua figura maravilhada com a vida, e soltou uma gargalhada. Meio embaraçado, antes que Almada entrasse no comboio, pediu se lhe podia tirar uma fotografia. Assim o fez, e assim disse adeus. Os seus olhos abraçavam aquela imagem e beijava-a com uns olhos que não era seus, nem dele.

chávena de café e um beijo em rodapé

quando Almada viu César, segundo o primeiro.


Almada viu César pela primeira vez, sentado numa esplanada de um café, numa tarde outonal. O recorte do vermelho das árvores, pintalgado pelo laranja fim de tarde do céu. Vestia castanho, e Almada não repararia nele caso este não envergasse um curioso cachimbo de cor azul eléctrico. Examinava-o com curiosa atenção. Depois, acendeu-o e fumou-o, como se tal fosse seu hábito desde sempre, e nele encontrasse indelével prazer.

O pitoresco quadro que diante dos seus olhos acabara de ser pintado, obrigou Almada a deter-se na beira da estrada mais tempo do que aquele que juraria ter estado a contemplar. Porém, não foi com surpresa que reagiu, quando o sujeito que fitava lhe ergueu a mão, em sinal de cumprimento. Era Almada, na verdade, quem estava a ser contemplado.

Desarmado, avançou tremulamente por entre as caixas de metal que expeliam fumo, e que nos últimos anos vinham invadindo a cidade. Almada odiava-as. Agravam diariamente, com seus excrementos tóxicos, a sua débil condição. Porém, hoje, socorria-se delas. De tudo o que servisse para retardar aquele encontro. Almada não entendia o porquê, mas temia aquela enigmática figura, tão banal como qualquer homem. Tremia.

-“Almada”.

-“César”.

Pediu um café. César acompanhou-o. Sem trocarem palavras, comunicavam. Mediam-se. Viam-se. Como era seu hábito, Almada lambeu delicadamente a colher no canto da boca, depois de mexer o café. Uma vez pousada a colher, César pegou nela, mexeu o seu próprio café e imitou o gesto.

Ali, naquele momento, algo foi selado. Uma gaivota, em voo raso, piou.

sábado, 15 de maio de 2010

cartas perdidas: o bucólico

Roubaste-me a idade, e fizeste-me só teu. Agora deixaste-me sair da tua penumbra. Eis-me aqui.


A rapariga tem os cabelos loiros, dourados pelo sol, quais campos de trigo ululando ao vento. Ele é mais novo e de aspecto franzino. Vieram a correr do lado do regato, e em frente ao meu alpendre se deixaram ficar. No desenrolar da conversa ela levanta-se e estende-lhe a mão, convidando-o a dançar. Os corpos deles juntam-se, e o rapaz ruboresce. Embalam numa dança trôpega, mas graciosa. Ela faz os possíveis para o ensinar, mas ele está mais preocupado em não parecer nervoso.

Depois deste quadro, meu caro César, a saudade de ti aumentou. Quantas vezes não acertamos o nosso ritmo, e por isso nos pisamos. Se nos fosse permitido ser criança novamente…

quarta-feira, 12 de maio de 2010

Junkies



Por entre reflexos e sorrisos, olha para nós, como se fosses um de nós.
Senta-te à mesa connosco, fuma um dos nossos cigarros, tenta perceber os nossos vícios e manias.






Esta noite serviu? Já sabes porque sorrimos?
Sente o sol da manhã na nossa cama, vê como te ardem os olhos e saboreia o cheiro do café.







Vive na nossa escuridão, vive na nossa luz.
Não te esqueças das sombras, das mentiras do cinema, nem das verdades da poesia.
Lembra-te do beijo quente de uma mulher e do abraço forte de um homem, como todos nós o fazemos.


fotografias de João Cruz

quarta-feira, 5 de maio de 2010

cartas perdidas: a despedida

Desta vez falaste-me da forma que eu menos esperava até então. Tão longe de mim enviaste-me uma carta. Nela, Almada, dizias

Vivi num estado onde nem ousam entrar. Flutuei. Planei acima, intocável. Vivi a vida de um outro eu. Mudei assim, segundo as tuas teorias malucas do universo. Com a pequena diferença de que me apercebi.
Agora dói.

Novamente, como em muitas dolentes noites em que a chuva bate, solitário, invoco Garcia Lorca, que tanto amavas.

Eu pronuncio teu nome,
nesta noite escura,
e teu nome me soa
mais distante que nunca.
Mais distante que todas as estrelas
e mais dolente que a mansa chuva.

Amar-te-ei como então
alguma vez? Que culpa
tem meu coração?
Se a névoa se esfuma,
que outra paixão me espera?
Será tranquila e pura?
Se meus dedos pudessem
desfolhar a lua!

Eu pronuncio o teu nome na noite e isso dói mais que nunca.