segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

a felicidade

Desci a montanha que levava ao vale, e a paisagem desaguou no mar. As gotas de orvalho eram tantas e tão cristalinas, que pareciam cristais que se evaporavam com o beijo da luz. A luz espantava-se com a sua própria grandeza, tocando nas mais pequenas coisas. As cores, vivas de serem novas, trocavam de cor entre si.

Parecia a primeira alvorada do mundo.

sábado, 29 de janeiro de 2011

cartas perdidas: o adeus de almada

Numa quarta feira, como tantas outras, cheguei a casa e tinha à minha espera um elefante e um isqueiro. Dentro desse elefante havia uma carta.

Vou partir mais uma vez. Mas antes disso, quero devolver-te o teu isqueiro. Junto com ele, envio outras coisas, como a conta do café. Acho que por esta altura já me deves o suficiente para comprar um carro. Mas agora num tom mais sério, tenho imensa pena de não te ter encontrado. Mais uma vez, fui à tua procura e não te encontrei. Podias me ter fotografado pela última vez naquela casa, mas pensando bem, já me fotografaste tantas vezes que já me perpetuaste lá.
Deixei tudo com a tua mãe. A tua mãe. E o cheiro da tua casa. Minha mãe e minha casa.
Obrigado. Também vou sentir a tua falta.

"Totally", A.

a impotência literária

Levantaram-se as almas do chão, e dançaram em meu redor. Banquetearam-se com o meu estado. Meu deus, meu amo, e meu senhor; quebrastes as minhas cadeias. Sou a sombra. Apenas a sombra. Alma penada desnorteada. Não abandones a minha alma na mansão dos mortos. Defendei-me, oh vós que sois o meu refúgio. Tu que és porção da minha herança e do meu cálice. Está nas vossas mãos o meu destino. Convosco a meu lado não vacilarei.

Por isso o meu coração se alegrava e a minha alma exultava. Por isso todo o meu corpo descansava tranquilo.

Vieram os corvos limpar a carcaça.

domingo, 16 de janeiro de 2011

os canais da nossa rua

Da televisão ouvem-se sons de interferência, como um zumbido azul das formigas que comem o ecrã. É estranho ter saudades de algo que não existe?

Este é um dia mau. Nada faz sentido. E não sei porquê tenho saudades de chorar no teu regaço enquanto me dizes que tudo vai correr bem. Sinto falta das memórias que nunca tive. Da minha versão das coisas. Dos dias solarengos de Inverno.

Era por tua causa que eu dizia coisas sem sentido. Nós éramos os amantes perfeitos, com um casamento na igreja de deserto, num domingo branco em Agosto. O meu sorriso de Agosto, o meu sorriso de domingo. Como tenho andado perdido sem ti. Lembro-me das nossas tardes de Fevereiro passadas nas ruas molhadas e a correr para comboios. Das nossas noites de Janeiro à espera do outro, ou em Março, a sonhar ao sol no teu quintal. Mas perfeitas eram as manhãs de Dezembro com os cigarros na cama e o teu café envenenado. Em Abril, partiste com as águas. Partiste em mil pedaços de água.

Tenho saudades do teu abraço, mas não me lembro dele. Não podemos ter falta daquilo onde nunca estivemos. Eu sempre disse que para mim eras um lugar, não uma pessoa. Casa é onde estou contigo. (e isto tudo fazia mais sentido se estivesses aqui)

Tenho saudades tuas. Mas a televisão diz que não devo. Tu pertences àqueles que estão sozinhos, partidos e magoados, pisaduras e cicatrizes que te vão mostrar quem és.


Da televisão ainda se ouvem os sons de interferência, como um zumbido negro das formigas que dançam no ecrã. É estranho ter saudades de algo que nunca existiu?