domingo, 6 de junho de 2010

carta biografica de um peixe que pensa em amar

Desde sempre me fora imensamente difícil falar sobre as minhas amizades, em vários sentidos. Apenas sobre Almada conseguia escrever sem sentir um pequeno nojo assim que pegava na caneta. Talvez seja por causa das cartas, as nossas cartas, que começaram a tornar-se mais importantes que os nossos encontros. Decidi expô-lo e, assim, a mim também. Em cada carta falava de um aspecto diferente da minha vida ou da sua, mas quando chegou o momento de lhe falar sobre uma nova amizade que nutria, não consegui escrever. Enquanto a minha voz se calava, a minha caneta começava a secar.

Agora, já uns anos depois, consigo falar graças a uma caneta nova, mas não a Almada.

Durante uma semana dei abrigo a um jovem estudante de medicina de apenas dezoito anos. Eu deveria ter cerca de vinte e cinco na altura, não estou certo. Se não era essa a minha idade, sinto que as minhas atitudes e comportamento em relação a ele remetem para esse periodo da vida, onde já não somos adolescentes, somos adultos, mas ainda temos os mesmos dilemas, mas com um pouco mais de dinheiro no bolso.
Nos primeiros dias, convivemos como colegas de quarto que fazem por se evitar. Ele mostrava-se agradecido pelo meu gesto altruista e eu sentia-me bem por ser um bom samaritano. Desde o inicio achei interessante o seu fascinio por mim, vi como ele me admirava, como secretamente sonhava ser como eu. Ele costumava espreitar enquanto eu tomava banho. Nunca me incomodou, gostava de agradar-me de todas as maneiras, tentava ao maximo que eu ficasse satisfeito. Em troca, eu dava-lhe bastante de mim, talvez demasiado. Tentei ensinar-lhe o maior numero de coisas possiveis. Ele sempre se mostrou disponivel a aprender. Sempre quis saber mais.
Eu adorava acordar com o cheiro a café pela manhã. Fazia-me lembrar outros tempos, também eles agradaveis, mas nos quais eu me sentia completo.
Quando ele finalmente arranjou casa, não me senti assim tão sozinho, apenas que tinha perdido algo de mim. E realmente perdi, a minha juventude, ele levou consigo um colar que me pertencia desde sempre, que marcou quem eu era. Talvez só o deixei fazer isso porque ele lembrava-me eu há muito tempo atrás. Antes de muitas estradas e macieiras no Outono.

Ali, sozinho na minha sala, lembrei-me de quanto sentia a falta de Almada. Ele uma vez disse-me, Vivi num estado onde nem ousam entrar. Flutuei. Planei acima, intocável. Vivi a vida de um outro eu. Mudei assim, segundo as tuas teorias malucas do universo. Com a pequena diferença de que me apercebi. Agora dói. Porém sou agora eu quem diz, Vivi num estado por entre celuloide e milagres em fotogramas. Flutuei. Planei acima, intocável. Vivi a vida de um outro eu. Mudei assim, segundo as tuas teorias malucas dos amores e dos romances. Com a pequena diferença de que não consegui separar de mim, nem de ti. Agora dói. Mais que nunca.

2 comentários:

  1. estou fascinado ihalto, és de facto um grande escritor

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  2. muito obrigado Pedro, é sempre bom saber que há pessoas que gostam do que escrevemos. Vê também as publicações do Almada Zarco :)

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